Trabalhadora do Mercado Adolpho Lisboa, em Manaus, quem a viu, não imaginava que na criatura frágil (pura aparência) já vivia uma barbeira, mateira, chofer de praça, carregadora de mercado, empregada doméstica a uma respeitável vendedora de plantas medicinais e verduras.

Maria Moreira aos 90 anos. Foto: Abrahim Baze/Acervo pessoal

Delicada e meiga que só ela, Maria Moreira Gomes foi a Maria Portuguesa do Mercado Adolpho Lisboa, em Manaus, e seu sotaque não negava. É amazonense registrada portuguesa, dizia ela, rindo na preciosa lucidez dos seus 99 anos na época, com a mesma euforia de uma criança que comemorava dois. E uma diferença singular: no seu aniversário tinha cachaça, vinho e cerveja. Quem a viu, não imaginava que na criatura frágil (pura aparência) já vivia uma barbeira, mateira, chofer de praça, carregadora de mercado, empregada doméstica a uma respeitável vendedora de plantas medicinais e verduras.

Dona Maria Portuguesa era sinônimo de festa, de luz, de gente que não nasce todo dia, uma raridade que se preocupava em dar lições, porque era a própria cartilha. “Também bonita só eu mesmo”, dizia.

Uma beleza que não tinha o peso de seus 99 anos, mas a leveza de tê-los completados sem deixar que as rugas viessem de graça, por caprichos da vida. Ela, ao contrário, foi caprichosa. Rodou a baiana extremamente feliz, feliz de impressionar e contar cada história de sua vida.

O trabalho era a vida

A conhecida Maria Portuguesa era de acordar cedo, às 4 da manhã, para ir ao mercado Adolpho Lisboa vender as plantinhas medicinais que ela mesma cultivava no seu quintal. Detalhe importante: Dona Maria jamais tomou remédio de médicos. Sua pequena fonte de mucuracaá, cala-a boca, sangue de cristo, Jiboia, mão-aberta, samandaru e outras, garantiram a cura para males do corpo, se bem que isso era difícil acontecer. No mercado, ela só não ia na Sexta-feira Santa. E lá passava toda a manhã. Depois do mercado, Dona Maria Portuguesa tomava uma cachacinha ou cerveja ou vinho (preferência devida a terra natal) e depois almoçava.

Ela cuidava das plantas da casa; criava uma neta de 19 anos, a Jussara, desde recém-nascida; reclamava da rua em péssimo estado, que era a Travessa Dr. Machado, entre a Major Gabriel e Joaquim Nabuco; assistia novela (mas não gostava dos beijos e abraços); torcia pelo Flamengo (uma paixão) e pelo Nacional. Vivia, enfim, uma vida quieta e alegre em que misturava a umbanda com catolicismo. Devota de São Sebastião e Nossa Senhora da Conceição, tinha as entidades preto velho e caboclo guerreiro como guias. Lago Grande, do qual estava afastada de trabalhos pela idade.

Maria Portuguesa do Mercado Adolpho Lisboa. Foto: Abrahim Baze/Acervo pessoal

Mas era uma lago mesmo

Não tinha nome melhor para guia da vida Maria Portuguesa do que Lago Grande. Haja trabalho, haja lago de trabalho para essa que foi uma pequena notável do tempo do tostão, que passou pelas pesadas profissões e venceu todas. Um orgulho: em 1925 tirou a carta de Chofer de Praça fazendo todos os testes e naturalmente aprovada com louvor.

Foi mateira, carregadora de banana nas madrugadas do mercado e empregada doméstica. Aliás, sua mocidade poderia ser medida pelo prazer que lembra os bailes do Luso Sporting Clube, Nacional Futebol Clube, Atlético Rio Negro, onde namorava e dançava sem parar.

A vida de Maria Portuguesa, diante de tudo que passou, foi uma nuvem de chuva que veio molhar o campo para a semente de sua própria vida. Ajudou a criar 13 irmãos, cinco filhos e uma neta que ela chamava de “minha Jussara”.

Dar os parabéns para a trajetória de vida de Maria Portuguesa era virar o copo, porque segundo ela, virar o copo era sinal de vida.

Naquela época, para ir ao mercado, ela atravessava um beco esburacado que não lhe desanimava. Foi uma mãe severa e cuidadosa com seu trabalho.

E diante da insistente pergunta sobre a fórmula que a fez passar dos 100 anos, sem usar óculos e com um olhar 43 que era de fazer inveja ao roqueiro RPM, uma lucidez tão viva quanto as vinagreiras que cultivava, respondeu: trabalho.

Esse trabalho não produziu riqueza maior que o amor com que ajudou seus filhos e netos a se arrumarem no mundo e formar a base de toda a vida de Maria Portuguesa.

A fisionomia urbana de Manaus do período em que viveu Maria Moreira Gomes reflete bem o espírito da sociedade que aqui floresceu em fins de 1800 e início de 1900. Foto: Reprodução/Instituto Durango Duarte

Por todos os filhos, netos e bisnetos que não fizeram parte da vida de Maria Portuguesa, a gente quer tomar emprestado um espaço debaixo dessa nuvem de chuva que vai fertilizar a terra. E o dia das mães é ninguém melhor que Dona Maria, que foi frágil como os primeiros raios de sol e depois forte como o próprio sol, para sintetizar o sentimento para com as mães.

Ela que fez tudo na vida para sobreviver, precisava ser mãe de uma geração que não aprendeu a delicada arte de alegria. E nem soube contar rugas como prêmio aos seus 101 anos de poesia. A simples poesia de ser a vida de Maria Portuguesa.

Seu falecimento foi notícia no Jornal do Comércio
A tradição de trabalhar no Mercado Adolpho Lisboa passou para os filhos, tendo um dos netos permanecido até hoje com a concessão de um box no mercado.

“… Noticiado no Jornal do Comércio de quinta–feira, do dia 02 de junho de 1988: Mercado para com a morte de dona Maria portuguesa. Foi um dia de luto no Mercado Adolpho Lisboa. Os feirantes que trabalham na parte interna do mercado encerraram o atendimento ao meio-dia, para prestar a última homenagem a Tia Maria Portuguesa que morreu na madrugada de ontem, vinte dias após completar 101 anos de idade. Foi enterrada às 14h, no Cemitério São João Batista. Ela era a mais antiga verdureira do Mercado Adolpho Lisboa.”

“… Foi noticiado no Jornal A notícia, no dia 02 de junho de 1988: Morre uma das figuras mais tradicionais. Dezenas de pessoas, entre amigos e colegas de trabalho acompanharam ontem, o enterro da centenária dona Maria Moreira Gomes, conhecida como Maria Portuguesa, querida e admirada por todos, que no dia a dia costumava ir ao mercado para trabalhar.

Maria Portuguesa morreu ontem, em sua residência, às 15h, por complicações trazidas pela idade. Ela completou, no último dia 10 do mês passado 101 anos. Para os amigos que levaram ao último adeus, só havia uma coisa a dizer sobre Maria Portuguesa: O seu exemplo de luta e de perseverança no dia a dia, buscando sempre o trabalho de feirante, desde os primórdios tempos do Mercado Municipal.

Agraciada com uma banca de n. 07, no Mercado Municipal, após a reforma na gestão do Prefeito Jorge Teixeira, Maria só de trabalho tinha 67 anos que lhe tornaram popular a todos que no dia a dia frequentavam o mercado. Para quem a conheceu, Maria não vendia somente verduras e plantas medicinais, vendia também todo o seu conhecimento sobre o Mercado Municipal, pois sabia de todos os momentos históricos do local e, dos áureos tempos em que como sempre relembrava os filhos, a comida era farta quando tinha tartaruga, a carne e o peixe. Maria trabalhou até 100 anos. No ano passado, em maio, seu centenário foi comemorado por todos os colegas do mercado e pelas autoridades. Como a idade já não lhe permitia os excessos teve que parar, mesmo contra sua vontade. Continuava lúcida e sempre relembrando suas andanças. Trazida sempre pelo carma de feirante e, em casa, segundo seu filho Antônio Mattos, Maria dedicava-se a criar galinhas e patos, em seu quintal, quase sempre para dar de presente a algum amigo.

Por duas vezes, foi condecorada a mãe do ano, em 1986 e 1987, numa homenagem feita pela Rádio Difusora. Sua popularidade, como sempre, lhe rendia homenagens daqueles que sempre a apontavam no Mercado Municipal.

Por: Abrahim Baze